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LOC (Narrador em tom exagerado e rebuscado)

  • ESOTÉRICA E COMOVENTE HISTÓRIA VIVIDA POR DONA FLOR, EMÉRITA PROFESSORA DE ARTE CULINÁRIA, E SEUS DOIS MARIDOS — O PRIMEIRO, VADINHO DE APELIDO; DE NOME DR. TEODORO MADUREIRA, E FARMACÊUTICO, O SEGUNDO. OU A ESPANTOSA BATALHA ENTRE O ESPÍRITO E A MATÉRIA

 

TEC - música “O que será” instrumental

 

LOC

  • Assim começa a história de um dos romances mais celebrados da literatura brasileira. Um livro regado pelo azeite de dendê e o delicioso tempero de Dona Flor, uma mulher que se vê num dilema entre dois amores: um selvagem e apaixonado, outro tranquilo e acalentador.

  • (?) Quem, ou o que, ela vai escolher?

  • Este é um programa sobre uma das baianas mais queridas da literatura.

  • Você começa comigo a tentar entender até que ponto as aventuras amorosas de Flor se encaixam em formas contemporâneas --e revolucionárias-- de se relacionar.

 

TEC - vinheta do podcast

 

LOC

  • Dona Flor é baiana das castas mais baixas da elite de Salvador, mas ainda uma pequena burguesa. Foi criada de forma muito estrita por sua mãe, dona Rozilda, que sonhava um marido perfeito, rico e respeitável para a filha prendada e recatada que criou.

 

SON - leitura de trecho

“Dona Rozilda queria as filhas em casa, recatadas, ajudando-a, com o trabalho e com o comportamento, a manter aquela aparência de conforto, a afivelar aquela máscara de gente se não opulenta pelo menos remediada e de boa educação. Quando as moças saíam para visitas a famílias conhecidas, para matinês dominicais, para alguma festinha em casa amiga, iam nos trinques, bem-vestidas, no ilusório aspecto de herdeiras de fino trato… . Lugar de donzela é no lar, sua meta o casamento, assim pensava dona Rozilda.”

 

LOC

  • Quando moça, não faltaram a Flor pretendentes. Ela era extremamente bonita e sensual, ao estilo de quase todas as protagonistas femininas de Jorge Amado, mas era ao mesmo tempo tímida e bondosa.

  • Vários homens da alta sociedade desejavam pedir sua mão em casamento, mas a donzela sonhadora educadamente mandava cada um embora com o coração partido.

  • Ela insistia para a mãe --que já estava bastante frustrada com a demora da filha para agarrar um marido rico e poderoso-- que não queria homem feio, que não ligava para dinheiro. Ela queria era casar por amor.

 

TEC - música romântica

 

LOC  

  • Depois de romper muitos corações, Flor finalmente acaba sendo seduzida por um respeitável doutor num baile da alta sociedade.

  • Ou pelo menos era o que ela pensava.

 

TEC - batuque ritmado de carnaval

 

LOC

  • O homem que ela e sua mãe pensavam ser um ricaço formado na universidade na verdade era um vagabundo, arruaceiro, bêbado, jogado e frequentador dos cabarés mais sujos de Salvador.

  •  Waldomiro dos Santos Guimarães, ou “Vadinho” para as putas e os amigos, como diz Jorge Amado em seu romance, tinha entrado de penetra com um de seus amigos na festa de um major e seduziu Flor após tirá-la para dançar e lhe contar muitas mentiras sobre sua procedência e suas posses.

  • Estava feito.

  • A moça imediatamente se apaixonou pelo malandro, e quis ficar com ele mesmo depois de descobrir toda a farsa que Vadinho tinha inventado.

  • Flor desafiou a ira da própria mãe, fugiu às escondidas com Vadinho e perdeu a virgindade com ele de forma a forçar um casamento.

  • Pois, naquela época, uma mulher que deixasse de ser  “donzela” sem aliança no dedo seria massacrada pela sociedade.

  • Contra tudo e todos, casaram-se então Flor e Vadinho, felizes para sempre.

  •  Ou, pelo menos, felizes até o próximo porre de Vadinho.

 

TEC - trecho filme (17:22 - 17:42)

“- Porreta, porreta, porreta!

-Nós todas queremos que você e sua esposa sejam muito, muito, muito, felizes

-Iiiiiih”

 

LOC

  • Com Vadinho, Flor estava constantemente entre o céu e o inferno.

  • Seu primeiro marido era apaixonado e lhe apresentou as delícias do sexo sem vergonha, sem preconceitos, sexo prazeroso tanto para ele quando para ela.

  • Em seus dias bons, Vadinho era solidário, engraçado, companheiro, carinhoso.

  • Fazia Flor se sentir amada, falava sempre o quanto a amava.

  • Acontece que o Vadinho era passarinho solto, e pousava em vários, vários galhos.

  • Traía Flor constantemente com todo tipo de pessoa: prostitutas, donzelas solteiras, senhoras casadas.

  • Qualquer moça que respirasse era pretendente potencial de Vadinho.

  • Isso deixava Flor num desgosto enorme.

  • Ela sabia que era chifrada e ele sabia que ela sabia que era chifrada. E isso nada mudava, ela não conseguia largar dele.

  • Ele sempre tinha meios muito convincentes de apaziguar…

 

TEC - trecho do filme (24:03 - 24:05)

“- Você não quer me levar para eu não conhecer tuas raparigas, não é?

- Ô, minha Flor, é tudo xixica, xixica pra passar o tempo, de permanente só tem você mesmo, minha Flor.”

 

LOC

  • E nisso ela sempre ia perdoando Vadinho, mesmo quando ele gastava em jogo todo o dinheiro que ELA ganhava dando aulas de culinária.

  • Mesmo quando ele batia nela para roubar uns trocados para apostar nos dados, morrendo de culpa.

  • Mesmo quando ele passava dias sem dormir em casa, na farra.

  • Pra entender um pouco melhor desse personagem ao mesmo tempo tão criticável e tão querido, conversei com ninguém mais ninguém menos do que Roberto Amado, sobrinho do próprio Jorge Amado, que conviveu mais de 40 anos de sua vida com o tio.

  • Antes jornalista e agora no meio acadêmico, Roberto dedica toda sua pesquisa na área da literatura a estudar Jorge Amado, faz seu doutorado sobre o tio e já deu vários cursos sobre os romances dele.

 

SON - Roberto  (18:20-19:55)

“Isso aqui é um cara maravilhoso, como você não vai se apaixonar por ele, não é culpa dela. O cara é incrível, cara, tem um charme, é um sedutor, é um Bon vivant, é bonito, ele é, conhece o lado bom da vida, né? É ele já apaixona por como até euro por ele. E eu caso, né? Porque eu vou vadinho ele, parece ele. Ele se transforma num personagem. É é aí que está ali. Oo Jorge Amado nesse nesse livro ele cria um personagem. É que é se transforma num esteriótipo, né? Que é OOO. O cara que é um bêbado viciado em jogo. Mas é maravilhoso assim. Mais encantador, né? Sea mozo EEE com aquele espírito. Que é uma mistura do do brasileiro e do baiano, especificamente, que é um espírito meio liberto, né? Não diria libertador, mas ele é um cara livre, que ele é apaixonado pelas mulheres, pela beleza, pela pela vida boa, né?”

 

TEC - trecho do filme (39:03- 39:30)

 

LOC

  • Nesse embalo, sempre fisgada pelas serenatas de desculpas de Vadinho, como a que acaba de tocar, Flor vai levando a vida entre altos e muitos, muitos baixos, sempre com a esperança de que Vadinho possa mudar.

 

TEC - trecho do filme (24:46- 25:03 e 25:15-25:30)

“-Eu fico pensando que poderia ser sempre assim, a gente podia ser um casal igual a todo mundo, você chegava com um presentinho….

-é… aí a gente ia sentar na calçada e fuxicar da vida alheia né…”

 

LOC

  • E, enquanto Vadinho não muda, Flor vai tentando se distrair das escapadas do marido com sua escola de culinária, criada e sustentada por ela mesma.

  • A saborearte.

  • E você não se engana se pensar que o nome parece sugestivo, como conta o Roberto.

 

SON - Roberto (20:02-20:51)

“É uma história boba. Estava andando lá no Pelourinho com o acho que é com. O caribé e aí que é um artista, é muito amigo dele, e aí eles viram escolas saborearte, há uma placa. E aí eles começaram a brincar, porque eles só falavam bobagem o tempo todo e tal. E aí virou essa boa saborear-te, né? Saborear, te sabe, saborear de de sim, então até um eu tô meio erótico, né? Da coisa é sabonete. Eu não perdi a oportunidade, eles eram eles falavam muito, eles eram. É um terror assim, né? Sempre a família toda não é de fazer a enfim, falar, fazer piadas picantes o tempo todo.”

 

LOC

  • Acontece que a vida desregrada de Vadinho tem suas consequências, tanto para ele mesmo quanto para Flor.

  • Num domingo de carnaval, Vadinho cai morto no chão, e uma autópsia feita mais tarde mostra que seus órgãos já estavam nas últimas havia algum tempo por conta da bebedeira de sempre.

  • Flor vive um período de luto muito sofrido.

  • Ela, que tanto amou Vadinho, tem que aguentar a mulherada da vizinhança dizer que seu marido mereceu morrer porque maltratava a esposa.

  • Ela vive também a perda de algo essencial em sua vida: o prazer sexual.

  • O desejo não vai embora com a morte de seu marido, e ela fica sem ter com quem extravasar tanta tensão.

  • Consumida pela vontade de transar, mas sem ousar olhar para qualquer homem sem estar casada, ela vive os dias se autodesprezando por se sentir suja, safada, uma pecadora.

  • As coisas só começam a melhorar quando um certo doutor --um doutor de verdade, desta vez!-- aparece em sua vida…

 

TEC - música romântica

 

TEC - trecho do filme  (1:03:18 -1:04:37)

“Cara dona Floripedes …. com amizade e respeito, Teodoro Madureira”

 

LOC

  • Doutor Teodoro é um farmacêutico bem careta, um clássico homem de bem da burguesia de Salvador dos anos 40.

  • Apesar de não ser uma figura muito emocionante, Teodoro ama Flor verdadeiramente, e ela se apaixona de volta por seu jeito bondoso.

  • Os dois se casam, e o segundo marido de Flor não deixa faltar nada a ela: assume as despesas da casa como Vadinho nunca fora capaz de fazer, mas ao mesmo tempo respeita a autoridade e a independência financeira de Flor.

  • Ele cuida para que ela não tenha de se sobrecarregar nos trabalhos domésticos, e não olha para qualquer outra mulher que não a Flor, nem de relance!

  • Flor encontra a serenidade que sempre quis, mas falta a paixão de antes…

 

TEC - trecho do filme  (39:03- 39:30)

 

LOC

  • Embora ainda ame verdadeiramente Teodoro, Flor não consegue deixar de pensar na falta que faz a loucura e o tesão de Vadinho, e, de tanto ansiar pelo falecido marido, acaba chamando sua alma de volta do além.

 

TEC - batuque

 

LOC

  • A trama já permeada desde o início pela mitologia dos Orixás fica então muito mais marcada pelo Candomblé, dividindo os leitores.

  • (?) Será que o Vadinho que voltou para Flor estava apenas na cabeça dela, uma fantasia, um delírio, uma metáfora elaborada de Jorge Amado?

  • (?) Ou de fato se tratava de um egum, que nas religiões de matriz africana é a alma de uma pessoa falecida?

  • De qualquer forma, fato é que a volta de Vadinho vira a vida de dona Flor de cabeça para baixo.

  • Isso porque o espírito do morto, que só ela enxerga, fica seduzindo a mulher incessantemente, tentando convencê-la a se deitar com ele.

 

TEC - trecho do filme (1:34:11-1:34:21)

“-Para com esse pé, Vadinho….

-E que que eu sou? Teu marido, esqueceu?”

 

LOC

  • Dona Flor, comprometida com seu segundo marido, vê os avanços de Vadinho como um desacato, uma ofensa à honra de uma senhora casada, e muito bem casada.

  • Ela ama Teodoro e não quer enganá-lo.

  • Mas Vadinho sempre foi muito convincente.

  • E Flor também não consegue esconder o desejo que sente pelo fantasma que a assombra, principalmente porque o egum aparece para ela completamente nu, sedutor.

  • No final da história, depois de quase perder a alma de Vadinho para um feitiço forte que buscava expulsar o fantasma de volta para o além, Flor acaba tendo seu verdadeiro final feliz ao decidir ficar com os dois homens que ama ao mesmo tempo, sem um favorito, apenas reconhecendo as diferenças que tanto ama entre eles, cada um com algo diferente a oferecer.

  •  Embora o Teodoro, coitado, não tenha ideia do que se passa no íntimo de dona Flor e nem suspeite da presença do egum, Vadinho sabe que Flor optou por ficar com dois maridos, e até incentiva esse caminho.

 

TEC - trecho do filme  (1:34:49- 1:34:58)

“-Vadinho, ele vai dormir nesta cama!

- E eu posso impedir, Flor? Mas apertando um pouquinho cabe nós três aqui!”

 

TEC - vinheta do podcast

 

TEC - som de fita voltando

 

LOC

  • Agora que já se sabe como aconteceram as aventuras amorosas da nossa dona Flor, vamos dar um passo atrás.

  • Antes de seguir com as discussões, é preciso entender que novas formas de se relacionar são essas que eu mencionei no início do programa, pra então ser possível debater se há, ou não, relação com o romance de Jorge Amado.

 

SON - Narrador, em som distorcido para parecer de um gravador antigo

“Para a maioria dos estudiosos da sociologia e antropologia, “não monogamia” é um termo guarda-chuva que abrange diferentes formas de relacionamentos consensuais que não são estritamente monogâmicos, onde as pessoas têm liberdade para se relacionar romanticamente e/ou sexualmente com múltiplos parceiros. Já o poliamor é entendido como a possibilidade de estabelecer mais de uma relação amorosa ao mesmo tempo com a concordância de todos os envolvidos.”

 

LOC

  • A Natasha de Rose, psicóloga especialista em não monogamia, explica um pouco mais sobre como a não monogamia contrapõe imposições sociais monogâmicas, como o casamento, e fala sobre o preconceito que pessoas não monogâmicas enfrentam nos dias de hoje.

 

SON - NATASHA

​

LOC

  • Mas,

  • (?) sabendo agora o que é a não monogamia, será que é possível comparar esses conceitos com a história da dona Flor?

  • Tudo bem que ela acaba com dois maridos no final, mas há mais fatores a serem considerados: ela se sente muito culpada, ela não assume seus relacionamentos publicamente e --importante-- um desses dois maridos nem tem ideia da existência do outro!

  • Como muita coisa nessa vida, não tem certo ou errado, apenas visões diferentes.

  • Você pode ter a sua opinião sobre minha pergunta, eu definitivamente tenho a minha.

  • Mas, antes de entrar nela, vamos ouvir quem mais entende.

 

TEC - Sons de máquina de escrever interrompidos por um “ping” e sons de uma folha sendo puxada

 

SON - entrevista Lizandro (mais ou menos 1:33-3:26)

“eu tenho justamente defendido a ideia de que Dona Flor é uma mulher à frente do seu tempo, porque com sua conduta, ela visa justamente a desafiar o sistema patriarcal”

 

LOC

  • Esse é Lizandro Calegari, professor de literatura na Universidade Federal de Santa Maria.

  • Encontrei o Lizandro quando estava fuçando o que havia no meio acadêmico que relacionasse Dona Flor e seus Dois Maridos a ideias de não monogamia.

  • Encontrei então um artigo que ele publicou na revista Literatura e Autoritarismo, em que ele defende que a personagem de dona Flor transgride a heteronormatividade.

  • Fui até ele com todas as minhas dúvidas sobre Flor e não monogamia e o assunto rendeu.

 

SON - entrevista Lizandro (mais ou menos 1:33-3:26)

“ou seja, ela é uma mulher que não está conformada com os padrões dominantes da sua época, então com o seu jeito de lidar com as situações, ela vai desafiando o sistema patriarcal e prendendo o caminho até o Queer.  Me parece assim que o que reforça o fato de ela estar à frente do seu tempo é ela tocar numa questão bastante polêmica ou tabu que diz respeito à questão da sexualidade do desejo feminino. Então veja que ela é uma mulher Queer, sim, não porque ela procura manter relações com outras mulheres, que é o que mais comumente as pessoas associam à noção Queer, mas porque ela visa a propor uma ruptura com o sistema patriarcal. E aí, de certa forma, tem a ver com uma outra questão que você levanta, que você se propõe no seu trabalho, que é a questão da monogamia. Veja que a monogamia pressupõe o quê? A monogamia pressupõe, de um lado, a constituição de família nuclear, no esquema pai e mãe, mas acima de tudo pressupõe amor romântico e fidelidade. Então é o que a gente observa no contexto da obra da Dona Flor, que de alguma forma ela está insatisfeita com a sua situação, ela busca transgredir e nessa transgressão ela exercita práticas que vão derrubando essa noção de amor romântico e de fidelidade. O fato de ela encontrar em diferentes homens, diferentes prazeres, se equipara atualmente a essas noções de poliamor e de não monogamia.  Porque veja que tanto o poliamor quanto a poligamia constituem o reverso, o oposto do que se espera do projeto patriarcal. E como eu disse antes, o projeto patriarcal pressupõe, então, o amor romântico, fidelidade conjugal, constituição de família, o prazer feminino é deixado em segundo plano, o que se visa com os relacionamentos sexuais é o prazer todo homem, e o poliamor é o reverso dessas características.”

 

LOC

  • Nesse sentido, para o Lizandro, a própria atração de Flor por Vadinho, esse homem que tanto a fez sofrer, tem relação com um rompimento das amarras patriarcais, e tudo isso culmina na rejeição da instituição tradicional do casamento, numa nova forma de se relacionar.

 

SON - entrevista Lizandro (6:27 - 7:22)

“Dona Flor é uma mulher que sente prazer, ela se sente satisfeita, ela se sente liberta de um conjunto de dogmas patriarcais que aprisiona para as mulheres e que faz com que, muitas vezes, as mulheres pensem que elas têm que proporcionar prazer aos homens e que elas não precisam sentir prazer. Então, eu acho que ela se sente atraída pelo Vadinho porque o Vadinho é essa dimensão que ela proporciona a liberdade que ela almeja, que ela deseja… O fato de ela encontrar em diferentes homens, diferentes prazeres, se equipara atualmente a essas noções de poliamor e de não monogamia. Porque veja que tanto o poliamor quanto a poligamia constituem o reverso, o oposto do que se espera do projeto patriarcal. E como eu disse antes, o projeto patriarcal pressupõe, então, o amor romântico, fidelidade conjugal, constituição de família, o prazer feminino é deixado em segundo plano, o que se visa com os relacionamentos sexuais é o prazer todo homem, e o poliamor é o reverso dessas características.”

 

LOC

  • Pro Roberto Amado, o que seu tio gostaria de mostrar era que, ao mesmo tempo que muita gente busca o conforto e a estabilidade, muita gente também tem lados e desejos que rompem com o socialmente aceitável.

 

SON - Roberto (mais ou menos 3:24- 5:06)

“Ela demonstra ser uma mulher sensual, apaixonada, sensual, mas ela também demonstra ter preocupação com a segurança dela, com o bem-estar, com uma estabilidade, o que também é o desejo da mulher. Essa é a sacanagem do Jorge Amado, porque o que ele quer dizer é o seguinte, as mulheres querem algumas coisas. Elas querem ter a estabilidade, a segurança e o conforto, mas elas querem também ter a loucura, a paixão louca e sem limites, incluindo a realidade, né? Porque o Vadim é uma alma penada, né?”

 

TEC - estática

 

TEC - trecho do filme (1:05:06-1:05:12)

“Por fora uma mulher séria, mas por dentro uma descarada, sonhando tudo o que é besteira e sujeira”

 

LOC

  • Apesar de todas as características transgressoras de Flor, esse tipo de frase autodepreciativa que você acabou de ouvir está o tempo todo na boca dela.

  • Ela sempre se sentiu culpada por desejar o prazer sexual, e esse desprezo por si mesma persiste quando Vadinho volta dos mortos e começa a seduzi-la.

  • Na cabeça de Flor, mulher direita não pode botar chifres no marido, não deve se entregar a qualquer tentação.

  • E essa culpa imensa sempre fica na minha cabeça quando penso na relação entre Flor e ideias atuais de não monogamia e poliamor.

  • Sim, ela fica com os dois ao mesmo tempo, mas por muito tempo acha que isso é algo errado, sujo.

  • Fui tirar minhas dúvidas com o Antonio Pilão, doutor em antropologia pela UFRJ, especialista no campo das não monogamias.

  • Contei a história de dona Flor para ele e pedi sua opinião sobre a questão da culpa.

 

SON - Antonio (3:20-6:22)

“Então, eu acho que são problemáticas recorrentes na vida das pessoas que tentam se converter a não-monogamia, né? Porque, no geral, elas foram socializadas com valores monogâmicos, com a ideia de relação a uma só, com sentimentos monogâmicos, expectativas de relação monogâmicas, elas vivem num contexto social normatizado pra monogamia, que o casamento é necessariamente monogâmico, e, subsequentemente, então, é lugar comum as pessoas se sentirem frustradas, culpadas, mulheres se sentirem depravadas, homens se sentirem cornos, etc. e tal, em função de todo esse processo, né? Considerando que, nos anos 40, você tinha menos visibilidade de práticas, de discursos e de ideias não-monogâmicas, a tendência é que esses sentimentos de inadequação, de equívoco, fossem ainda mais intensos do que são hoje em dia, né? Normalmente, as pessoas que se afirmam não-monogâmicas como uma identidade já estão familiarizadas com discursos de neutralização dos efeitos negativos das práticas de se sentir e viver não-monogamicamente, né, que eu quero dizer com isso. Elas estão inseridas em grupos, elas têm discursos que dizem que isso faz sentido, que isso não é ruim, que não tem nada de errado, que não é um desvio de caráter, não é nada desse tipo. Então, elas vivem sem um processo de normalização, mas não significa que elas não sentiram culpa e indecisão em algum ponto desse processo, né? É, não, claramente, obviamente, elas vão sentir, né? Mas, assim, nesse processo, as informações que vêm sobre o tema, o processo de trabalho interior delas com essas informações, faz com que, em boa parte dos casos, seja possível minimizar esses sentimentos e vivenciar a não-monogamia, embora muita gente não consiga, ou muito bem, ou desista também, né?”

 

LOC

  • Para o Lizandro, a culpa é, mais do que natural, mais uma prova da não conformidade de dona Flor.

 

SON - Lizandro (12:10-14:29)

“ Eu acho que a culpa não ofusca as características progressistas da Flora, e também não exclui a possibilidade de ela ser não monogâmica, e por quê? Porque veja, o que é a culpa? A culpa é a consciência de que você está fazendo alguma coisa incoerente. Eu não gosto de falar algo errado, porque não existe erro social, o que existe são incoerências sociais. Então, se ela se sente culpada, bom, é porque ela tem a consciência de que ela está fazendo algo que seja incoerente para a sua história, para a sua sociedade em relação ao seu momento. Agora, é de se esperar um sentimento de culpa de Dona Flora? Eu acho que seria estranho se nós não esperássemos um sentimento de culpa dela. Porque veja, é natural sim que ela sinta esse sentimento de culpa, porque ela foi educada dentro de moldes patriarcais, dentro de um sistema rígido e conservador….  a culpa, na verdade, é um indicativo, um sinal de que ela tem a consciência de que ela está transmitindo e que essa transgressão é necessária para que ela progrida”

 

LOC

  • Mas, voltando pro Antonio, o antropólogo, tive de levar outra questão para ele, que é a questão da transparência.

  • Afinal de contas, por mais que Flor e Vadinho aceitem essa nova dinâmica amorosa no final da história, Teodoro não faz ideia do que está acontecendo.

  • Algo que vai totalmente contra a ética não monogâmica dos dias atuais.

  • Com isso em mente, Antonio pede cautela nas comparações, que podem virar apenas anacronismo.

  • Para ele, mais do que definir se há ou não ideias iniciais de não monogamia no romance, o que importa é o debate levantado pelo livro.

 

SON - Antonio (1:46-2:35 e 7:34-11:14)

“Mas o que eu quero dizer é que não dá pra reduzir esse conflito a todas as experiências não-monogâmicas, entende? Se a gente pegar esse caso, que, de fato, é o caso de muitas pessoas em variados contextos ainda atuais, reduzir e explicar todas as histórias a partir disso seria um ato simplista, né? Essa teoria ou essa explicação servem em boa medida pra explicar o teu caso em específico, né? E em menos medida pra explicar a não-monogâmia contemporânea como um todo, ainda que tenha um valor explicativo razoável

Aqui no Brasil, quase ninguém fala em não monogamia ética ou consensual. Mas quase sempre quando se fala em não monogamia, presume que seja consensual. Entendeu? Então, enquanto os americanos, se você não fala nada, pode ser consensual ou não, aqui no Brasil, quando se fala em não monogamia, já se presume que é consensual. Então, claro que a gente não está falando de pessoas concretas, a gente está falando de uma obra de literatura em que, inclusive, uma pessoa não está viva, mas, assim, se a gente tentasse aplicar de forma um pouco grosseira o conceito não monogamia, ele não se enquadraria pelo fato de não ser consensual, né? Então, as partes precisariam estar em acordo.  Então, esse caso seria um caso de infidelidade, entende? Ainda que o título seja de dois maridos, de fato, não é possível ter dois maridos. Se enquadraria no crime de bigamia, previsto com reclusão, inclusive. Ainda está em vigor, é uma lei da década de 40, do último Código Penal Brasileiro, mas que ainda está em vigor até os dias de hoje. Então, eles não foram casados, se fossem, estariam cometendo um crime, e a relação, nesse sentido, aparentemente, não é não monogâmica, por não atender esse critério da consensualidade. Mas eu acho, talvez, mais importante que dizer se se enquadra na monogamia o que o assunto permite pensar sobre o tema, né? E, certamente, ele permite pensar bastante.”

​

LOC

  • A psicóloga Larissa Melo, especialista em não monogamia, vai numa linha parecida.

​

SON - LARISSA

​

LOC

  • Pra complementar essa discussão, eu conversei com Beatriz Sardinha, estudante de 20 e poucos anos que não vive a vida em moldes monogâmicos, pra entender se ela se identifica de alguma forma com a história de dona Flor.

  • Ela me contou que, embora não se sinta à vontade para comparar diretamente a história criada por Jorge Amado com ideias atuais, ela concorda que a narrativa faz pensar sobre como a instituição do casamento e ideias de fidelidade podem trazer prejuízos emocionais.

 

SON - Sardinha (9:12-11:20)

“E eu acho que o que ressoa mais pra mim é muito mais essa questão de que, seja você monogâmico ou não monogâmico, você nunca vai saber absolutamente tudo que tá acontecendo com seu parceiro. E eu acho que a monogamia é muito mais uma ilusão de você achar que você sabe tudo que tá acontecendo. Então, pra mim, esse final é muito mais uma questão de ela tá num relacionamento monogâmico agora com o Teodoro, ela tem esse casamento, que é o que ela achava que ela queria, assim, né? Que é, enfim, que dá uma estabilidade pra ela. Por mais que ela também reforça, né? Que ela queria continuar trabalhando e tudo mais. Ela não vai, enfim, só depende dele, mas eu acho que, por exemplo, o Teodoro nunca vai saber tudo que tá passando na cabeça dela Mesmo que ela fosse o mais transparente possível, ele nunca ia saber tudo que tá passando na cabeça dela, porque eu acho que ninguém quer revelar absolutamente tudo que tá passando na cara pra cabeça. E aí eu acho que o que fica pra mim desse final é, tipo, o quanto isso, essa ideia de que a gente consegue na monogamia saber tudo que tá acontecendo porque você prende uma pessoa, eu acho que isso é falso, assim, porque, enfim, você pode omitir o que você quiser. E essa questão da comunicação, tipo, você pode falar ou não e você deveria falar, você deveria se comunicar com o seu parceiro, sendo monogâmico ou não monogâmico também, entendeu? Então eu acho que pra mim ficou muito mais isso de essa ilusão de que alguém acha que pode saber tudo sobre uma pessoa, enfim, e isso pelo pressuposto de que você vai, enfim, apenas se relacionar com ela, sabe?”

 

TEC - música “O que será” instrumental

 

LOC

  • A intenção deste programa não é bater o martelo sobre o que é ou o que não é.

  • É sobre ver visões diferentes sobre um tema que rende muitas, muitas opiniões diferentes.

  • E por isso, peço licença agora para dizer a minha.

  • O que encanta em Dona Flor e Seus Dois Maridos é poder se sentir tão seduzido quanto a protagonista por Vadinho, entender completamente seu dilema, a triste sina da mulher que não consegue viver sem o que tanto faz mal a ela.

  • (?) Que pode Dona Flor fazer se o homem que a maltrata, engana e humilha é também o homem que dá sentido e prazer imensurável a sua vida pacata?

  • Todos nós buscamos o que nos destruirá no final.

  • Queremos as delícias do barato que vem antes da overdose.

  • Ao mesmo tempo, paradoxalmente, desejamos todos segurança e consolo quando as aventuras da vida nos deixam estatelados no chão, machucados, assustados.

  • Ansiamos por colo, mesmo sabendo que não o encontraremos nas pessoas perigosas que nos fascinam, nos hipnotizam.

  • Desta forma, o livro faz pensar nas várias possibilidades que ignoramos em nome de regras sociais e morais muitas vezes ultrapassadas.

  • Pois Dona Flor percebe, depois de muito se culpar, que não precisa abrir mão de ter segurança e estabilidade para ter suas doses lascivas de Vadinho.

  • Ela consegue encontrar o conforto de que tanto necessita não em seu primeiro marido, mas em outra pessoa.

  • Teodoro, o puro.

  • Que nunca vai satisfazer as fantasias devassas de Flor, mas que a encherá de ternura e carinho, matando os fantasmas do medo, da dúvida, da baixa autoestima.

  • (?) Então, que mal tem?

  •  A própria Flor sabe que ama ambos os homens. A própria Flor sabe que nutre sentimentos diferentes por cada um deles, de acordo com o que cada um tem a oferecer a ela, e não há favorito.

  • E não tem como julgá-la, sabendo do quanto ela sofreu com Vadinho, o quanto ela sofreu sem ele.

  • O desfecho encanta por ser o melhor dos dois mundos, uma conquista de liberdade tremenda para uma mulher das classes mais conservadoras da Bahia dos anos 40.

 

SON - leitura do livro

“Do balcão, despachando uma freguesa, dr. Teodoro lhe sorri, todo besta e fátuo ao vê-la tão formosa. Ela lhe sorriu também e de relance. Llhe espiou a testa: nem sinal de chifres. Que tolice, dona Flor, que significa esse gosto repentino pela farsa? Entre ela e o doutor nada se alterara, tampouco. Apenas a memória da manhã na cama, persistia a fazer mais íntima aquela tarde de plantão.

E DEPOIS, NA MANHÃ CLARA E LEVE DE UM DOMINGO, OS HABITUÉS DO BAR DE MENDEZ, no Cabeça, viram passar dona Flor toda elegante, pelo braço do marido, dr. Teodoro. Ia o casal para o Rio Vermelho, onde tia Lita e tio Porto esperavam para o almoço. De rosto vivo mas de olhos baixos, discreta e séria como compete a mulher casada e honesta, dona Flor correspondeu aos bons-dias respeitosos. Seu Vivaldo da funerária mediu dona Flor de alto a baixo: …. — Vejam como vai se rebolando. A cara séria, mas as ancas — olhem aquilo! — soltas, até parece que alguém está bulindo nelas… Um felizardo esse doutor… Do braço do marido felizardo, sorri mansa dona Flor: ah!, essa mania de Vadinho ir pela rua a lhe tocar os peitos e os quadris, esvoaçando em torno dela como se fosse a brisa da manhã.”

 

TEC - música “O que será”

 

LOC

  • Este podcast foi pensado e roteirizado por Luana Benedito como Trabalho de Conclusão de Curso da Escola de Comunicações e Artes da USP.

  • O programa foi editado por Luana Benedito e Karolina Monte.

  • Você ouviu neste programa a música “O que será”, de Simone, gravada para o filme “Dona Flor e seus Dois Maridos”, dirigido por Bruno Barreto.

  • Você também ouviu a reprodução de trechos desse mesmo filme

  • Também foram lidos e interpretados trechos adaptados do romance “Dona Flor e seus Dois Maridos”, de Jorge Amado.

  • A leitura e interpretação desses trechos foi feita por Karolina Monte.

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